“Em busca da mamadeira sagrada” ou “O caçador do leite perdido”
Barrigudos
Por estes dias tive uma notícia boa e outra ruim.
A ruim é que Matias precisa de um tipo de leite em pó muito caro. Um gasto de quase 300 reais por semana.
A boa é que o governo estadual tem um programa que fornece este leite gratuitamente.
Quase não acreditei quando ouvi isso. Então fui checar na internet e vi que há trinta unidades estaduais de saúde responsáveis pelo “fornecimento de medicamentos excepcionais”. Nada mal.
Destas trinta, cinco estavam na cidade de São Paulo. Nada mal.
Mas, desta cinco, três estavam em hospitais e só forneciam medicamentos para seus. Aí já começa a complicar.
E, dos dois lugares que sobraram, o começo do processo tem que ser feito apenas em um, o AME (Ambulatório de Especialidades Médicas) Maria Zélia. Isso já é ruim. Uma cidade com mais de dez milhões de habitantes não pode ter apenas um lugar para fornecer estes remédios.
E, para meu azar, o ambulatório está a mais de 30 km de casa.
O Maria Zélia fica no Belenzinho e tem 694 funcionários, 41 consultórios, duas salas de cirurgia e 30 especialidades médicas. Além da farmácia de alto custo, que era o que me interessava.
Ele é enorme, dentro de uma área verde, e para minha surpresa, havia várias vagas para estacionar.
Passando pelas primeiras salas vi filas modestas e já fui pensando: “Vou usar um serviço público eficiente e com rapidez. Te cuida, Suécia!”.
Mas, quando cheguei à sala da farmácia de alto custo, me deparei com centenas de pessoas.
Peguei minha senha, tirei meu livro (levei um romance japonês de 400 páginas para passar o tempo) e me sentei, esperando a chamada.
Para minha surpresa, não demorou muito.
Uma atendente foi pedindo os documentos e eu, orgulhosamente, entregava-os todos. RG, CPF, Certidão de nascimento, receita, relatório médico, ficha de avaliação devidamente preenchida, etc… Tudo nos conformes. Senti a rara alegria de estar com toda a burocracia em ordem.
Então a atendente juntou todos os papéis e disse: “Vou levar para o médico”.
Achei aquilo estranho. A palavra da minha pediatra não bastava? Ela explicou que um médico do AME tinha que aprovar tudo.
Não vi problema, abri meu romance japonês e fiquei esperando.
Eis que, depois de algumas páginas, a recepcionista volta e diz: “Seu pedido não foi aceito.”
“Por quê?”
“Está tudo aqui”, ela me disse apontando um bilhete mandado pelo médico.
Ele havia escrito o que eu deveria trazer: “Relatório médico legível, com descrição detalhada do quadro alérgico. Criança em idade de aleitamento materno exclusivo, justificar a intersecção do mesmo.”
Fui ver se não havia um relatório médico legível. Havia. Conforme mostraram os exames, a pediatra, num trecho de sua petição, escreveu: “Paciente apresenta quadro de sangue nas fezes, sendo necessário o uso de fórmula de hidrolisado proteico.”
Noutro trecho explicava que “a mãe não tem leite materno.”
Ou seja, havia a descrição do quadro alérgico, explicitado pela presença de sangue nas fezes, e a afirmação de que a mãe não tinha leite.
Mas era como se ele nem tivesse lido.
Fiquei pensando nos motivos que levaram o médico a negar o pedido e cheguei a quatro hipóteses:
a-) Há muitos pilantras tentando conseguir o leite para revendê-lo e o médico tem que evitá-los.
b-) Complexo de zelador. Ou seja, ele sente a necessidade de mostrar algum poder, e esse poder quase sempre se dá por alguma proibição.
c-) Ele tem que negar um certo número de pedidos para mostrar-se útil, de forma que seu cargo não seja extinto.
d-) Sadismo.
Meu palpite é que seu ato foi motivado por 45% de “c”, 39% de “b” e 10% de “d” e 6% de “a”.
A atendente, para me consolar, explicou: “É muito comum eles negarem o pedido na primeira vez. Aí vem um relatório maior e eles liberam.”
Na hora lembrei de um professor de Literatura Portuguesa. Na minha primeira prova na faculdade de Letras, ele me deu uma reles nota 3. Aí os veteranos me explicaram: “Para esse cara você tem que escrever bastante. Faz o texto e depois repete tudo de novo.”
Foi o que fiz. Na minha opinião, minha nova prova tinha sido péssima. Prolixa e repetitiva. Mas tirei 7 e passei de semestre.
Voltando à vaca fria, agora terei que voltar à pediatra, pedir um relatório mais comprido e retornar à fila.
Foram 67 km rodados à toa. Para mim não foi um sacrifício, pois fui com meu carro. Ele tem mais de 120.000 km de idade, mas me levou e trouxe com conforto.
Porém, pense num sujeito que perdeu um dia de trabalho para vir de Parelheiros até o AME Maria Zélia, e terá que repetir tudo de novo porque o médico tem prazer em negar um pedido totalmente legítimo e documentado.
Assim fica difícil amar Maria Zélia.